Por José Ramos Tinhorão
Da mistura de ritmos que animavam as festas do proletariado carioca,
nasceu o samba: resistiu ao tempo, ultrapassou os limites das favelas,
deixou de ser marginal, ganhando a classe média e, finalmente, chegou às paradas de sucesso,
para transformar-se em sinônimo de Brasil.
J.B. Debret: Marimba - O passeio de domingo a tarde.
O samba figura ao lado da modinha e do choro como a terceira forma de música popular brasileira mais resistente no tempo. A modinha surgiu em meados do século XVIII, o choro ao correr da segunda metade do século XIX e o samba já ultrapassou o meio século. Tem sua origem ligada ao advento de uma nova realidade social do país: o crescimento das camadas populares urbanas, provocado pelos ensaios de industrialização a partir das últimas décadas do século XIX.
De uma forma geral, o samba corresponderia à manifestação musical mais representativa das novas camadas de trabalhadores urbanos, tal com a modinha representara anteriormente o espírito refinado das elites e o choro a criatividade da heterogênia classe média composta pela mistura de brancos e mestiços. Neste sentido, não deixa de ser coerente o fato de o instrumento típico da modinha de salão do século XIX ter sido o piano, enquanto o choro se fixou no terno de pau e corda (a flauta de ébano, o violão e o cavaquinho), ficando para o samba, inicialmente, a percussão de adufes, surdos e pandeiros, instrumentos indicados de sua vinculação à origem negro-escrava dos batuques.
A história do samba remete, portanto, aos acontecimentos determinantes da formação de camadas proletárias urbanas no novo quadro de relações sócio-culturais surgido com a concentração de indústrias no sul do país. E como o centro desse pólo industrial era o Rio de janeiro - então também a capital do Brasil - , aí deveria aparecer a forma de canto e dança que, em breve, se espalharia como um modelo de criação musical popular para todos os núcleos urbanos de estrutura semelhante.
Realmente, o aparecimento do samba verificou-se numa área do Rio claramente delimitada, em um tempo perfeitamente localizado e por efeito de uma sério de contingências de caráter econômico-social que, ao serem portas a descoberto, permitem compreender o próprio fenômeno da criação popular. Aconteceu entre o fim do século XIX e início do século XX. A libertação dos escravos, 1888, viera liberar numerosa mão de obra no momento mesmo em que se iniciava acelerado processo de urbanização nas principais cidades do litoral. Esses antigos escravos - trabalhadores do eito, artífices e empregados domésticos - iam contribuir, pois, para engrossar as camadas populares do Rio de Janeiro e fazer transbordar o acanhado quadro social herdado do Império.
Os morros cariocas, até então, ainda não eram habitados, como logo viria a acontecer; o próprio morro de Mangueira - que era o antigo morro do Telégrafo - permanecia um extenso bosque até o início do século, merecendo por seus bons ares o apelido popular de Petrópolis dos Pobres. Seus primeiros barracos seriam construídos apenas em 1916, quando um incêndio no morro de Santo Antônio, próximo ao largo da Carioca, obrigou centenas de pessoas a se mudarem para aquele arrabalde.
Dessa forma, pode-se afirmar que o grosso da população do Rio de Janeiro vivia já nos subúrbios que começavam a se expandir para os lados de São Cristóvão, ao norte, e Catete e Botafogo, ao sul, como refluxo do superpovoamento do centro, cuja periferia podia ser considerada a área dos antigos mangues, conhecida pelo nome de Cidade Nova.
A Cidade Nova abrangia a vasta área urbana compreendida por dezenas de ruas situadas às margens do eixo hoje compreendido pela Av. presidente Vargas e pelo canal do Mangue, e cujos extremos confinavam com a zona do Porto, com o morro de São Diogo, com o centro tradicional e com o bairro do Estácio. É isso, desde logo, que vai explicar o renome da Praça Onze como reduto do Carnaval popular. mas, no inicio do século, ela nada mais era do que um extenso gramado situado entre as ruas Visconde de Itaúna, senador Eusébio, Santana e Marquês de Pombal, decorada com um chafariz desenhado por Grandjean de Montigny no centro. Era nesse descampado que, durante o carnaval, defrontavam-se os cordões que vinham da Zona Sul e da Zona Norte para empenhar-se em disputas que terminavam em brigas memoráveis.